Contrato de Fornecimento de Combustível – Galonagem Estimada em Contrato que Não Corresponde a Real Capacidade do Posto de Combustível
Esta é uma pergunta recorrente aos operadores de postos de combustíveis que ostentam bandeiras de companhias distribuidoras. Ao final, uma vez exaurido o prazo contratual e havendo muita galonagem a ser ainda adquirida por parte do posto, o que fazer nesta situação. Seria possível pleitear o exaurimento do contrato na justiça?
Trago aqui a experiência vivenciada num caso em concreto pelo escritório. No caso, existe em contrato firmado a denominada cláusula de prorrogação, ora questionada, de modo que, não atingida a galonagem mensal estipulada estaria o revendedor obrigado a continuar adquirindo produtos até a última gota estimada inicialmente. No entanto, a estimativa de venda mensal mínima estipulada desde o início da relação nunca foi alcançada pelo revendedor.
O contrato de aquisição de combustível impõe ao revendedor o ônus de adquirir da distribuidora uma galonagem de 300.000 litros mensais a partir do terceiro ano de vigência em diante, sendo que o revendedor nunca chegou a atingir esta marca, na verdade, o estabelecimento nem se quer atinge a marca de volume mínimo estipulado individualmente para cada produto.
Para ser mais claro, cumprido o prazo contratual, no caso, uma década de contrato, o estabelecimento somente adquiriu 14.905.000 (quatorze milhões e novecentos e cinco mil litros) de combustíveis, enquanto o estipulado inicialmente no contrato é de 34.560.000 (trinta e quatro milhões e quinhentos e sessenta mil litros) de combustíveis. Ou seja, durante dez longos anos somente se adquiriu 43,12% da galonagem inicialmente estimada, menos de 50% do estipulado lá no início da relação.
Através de um simples raciocínio lógico, considerando que até o termo final do contrato o posto nem sequer alcançou a quantia de 50% da litragem estimada, chega-se a conclusão de que o revendedor precisaria de no mínimo mais dez anos (uma década), repita-se, dez anos, para adquirir a galonagem restante.
Todavia, a distribuidora jamais se insurgiu com relação a venda a menor adquirida pelo revendedor em ralação a pactuada, isto considerando os dez anos integralmente.
Em respeito a regra de hermenêutica dos contratos, seria lícito que uma das partes, que durante todo a relação contratual (no caso, uma década), permitiu a outra o seu cumprimento em menor extensão, possa agora exigir o que deixou de ser cumprido durante todos esses anos, nos parece razoável que não.
Diante dos fatos, abriu-se espaço para aplicação da teoria da supressio (supressão) que nas palavras do doutrinador Flávio Tartuce[1] “significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito, pelo seu não-exercício com o passar dos tempos.”, em outras palavras, a perda do direito por parte do credor pelo não exercício no tempo.
Desse modo, as aquisições dos volumes mínimos mensais que ao longo de inúmeros anos foram cumpridas diferentemente do estipulado no contrato de fornecimento, e, considerando que a distribuidora a isto nada opôs ao longo de todos os anos, faz surgir em favor do autor um direito reconhecido pela doutrina como surrectio (surgimento).
Nas palavras de Flavio Tartuce[2], “ao mesmo tempo em que o credor perde um direito por essa supressão, surge um direito a favor do devedor, por meio da surrectio (Erwirkung), ou surreição (surgimento)”, ou seja, direito não previsto no contrato, mas que decorre do princípio da boa-fé objetiva e dos costumes.
Ocorreu que, mesmo a distribuidora sabendo dos volumes mensais adquiridos pelo posto, a mesma se silenciou quanto a qualquer exigência contratual que lhe tocaria com relação aos volumes inferiores adquiridos em oposição ao estimado desde o início.
Assim, afirmou-se em ação proposta, que em razão da prática consolidada, que a cláusula de cota mínima perdeu toda a sua eficácia, a qual reitera-se, pela contumaz e ininterrupta prática admitida ao longo de uma década, somada a total ausência de oposição da distribuidora.
O caso aqui exposto foi a julgamento pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, com acordão preferido em 03.10.2019, pela 1ª Câmara de Direito Comercial, em favor do posto revendedor, acatando o Tribunal na íntegra a tese aqui explanada. Veja-se a decisão proferida a seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CUMPRIMENTO DE CONTRATO CUMULADA COM DECLARATÓRIA DE INVALIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. […]. ADIMPLEMENTO CONTRATUAL SUSTENTADO NA PETIÇÃO INICIAL. CONTRATO FIRMADO PELO PRAZO DE DEZ ANOS. COMPRA DE COMBUSTÍVEL PELA AUTORA VERIFICADO DURANTE TODO O PERÍODO DA CONTRATUALIDADE, EMBORA QUE POR QUANTIDADE INFERIOR À COTA MÍNIMA DE GALONAGEM. TERMO FINAL ALCANÇADO. PRORROGAÇÃO AUTOMÁTICA DO CONTRATO. TEORIA DA “SUPRESSIO”. PEDIDO DE APLICAÇÃO AO CASO, A FIM DE OBSTAR O CUMPRIMENTO DA CLÁUSULA CONTRATUAL QUE PREVÊ A PRORROGAÇÃO AUTOMÁTICA DO AJUSTE NA HIPÓTESE DO NÃO CUMPRIMENTO DA COTA MÍNIMA DE GALONAGEM DURANTE O PRAZO CONTRATUAL. TESE ACOLHIDA. EMPRESA LICENCIADA QUE DURANTE OS DEZ ANOS DE VIGÊNCIA DO NEGÓCIO ADQUIRIU QUANTIDADE DE COMBUSTÍVEL INFERIOR À COTA MÍNIMA PREVISTA CONTRATUALMENTE, SEM QUALQUER INSURGÊNCIA OU OPOSIÇÃO DA EMPRESA LICENCIANTE. EXTINÇÃO DO DIREITO DA RÉ DE EXIGIR DA AUTORA A SATISFAÇÃO DE COMPRA PELA COTA MÍNIMA DE GALONAGEM DECORRENTE DO NÃO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO CORRESPONDENTE DURANTE O PRAZO CONTRATUAL. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. “SUPRESSIO” CONFIGURADA. PRORROGAÇÃO AUTOMÁTICA DO CONTRATO QUE NÃO MAIS PODE SER EXIGIDA. INCIDÊNCIA DA TEORIA DA “SURRECTIO”. SENTENÇA MODIFICADA NO PONTO. Consoante tem ostentado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “(…) a supressio inibe o exercício de um direito, até então reconhecido, pelo seu não exercício. Por outro lado, e em direção oposta à supressio, mas com ela intimamente ligada, tem-se a teoria da surrectio, cujo desdobramento é a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, pela expectativa legitimamente despertada por ação ou comportamento. 2. Sob essa ótica, o longo transcurso de tempo (quase seis anos), sem a cobrança da obrigação de compra de quantidades mínimas mensais de combustível, suprimiu, de um lado, a faculdade jurídica da distribuidora (promitente vendedora) de exigir a prestação e, de outro, criou uma situação de vantagem para o posto varejista (promissário comprador), cujo inadimplemento não poderá implicar a incidência da cláusula penal compensatória contratada.” (REsp 1338432/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/10/2017, DJe 29/11/2017) INVERSÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. CUSTAS PROCESSUAIS E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS A SEREM ARCADOS PELO RÉU. VERBA HONORÁRIA RECURSAL. INAPLICABILIDADE. ÊXITO RECURSAL DA APELANTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (Ap. cível n. 0321748-15.2014.8.24.0023; 1ª Câmara de Direito Comercial, J. em 03.10.2019; TJSC).
Importante também desmistificar o prejulgamento que possa existir e que gira em torno da validade da cláusula de exclusividade ou da legalidade de estipulação de cota mínima em contratos comerciais, visto que não foi o foco da demanda. Muito pelo contrário, reconhecendo a validade do contrato e seu cumprimento pelo posto, o que se pediu é que em juizo fosse posto um limite a força obrigatória da cláusula contratual que prorroga automaticamente o prazo contratual para nada mais e nada menos que uma década, isto, no mínimo, em virtude de que passados 10 anos de relação o posto apenas conseguiu alcançar 43,12% da galonagem estimada no início.
Neste ponto, o Tribunal local embora atento ao princípio da força obrigatória dos contratos, não se eximindo de reconhecê-lo e cita-lo na decisão, mas, mesmo assim, decidiu a favor do revendedor, com base nos fatos que envolvem o caso em concreto, levando em consideração a boa-fé objetiva (arts. 421 e 422, do CC). E, considerando o implemento temporal do contrato, bem como a inexigibilidade do cumprimento da cláusula relativa a prorrogação contratual pela aplicação da teoria da supressio, reconheceu a extinção do contrato em discussão, pelo seu cumprimento por parte do revendedor, conforme foi pretendido pelo posto ao propor a ação em juízo.
Seria até razoável caso o estabelecimento conseguisse cumprir 80% ou mais do que foi estimado individualmente por produto e precisasse de alguns meses a mais para cumprir o restante, ou, como o contrário também seria razoável, no caso de um posto adquirir a totalidade do que foi estimado antes do fim do prazo previsto para seu cumprimento, o que levaria, neste caso, a extinção imediata do contrato. Mas para muito postos, em especial, contratos mais antigos, a situação é semelhante ao relatado aqui, o que realmente assusta o revendedor ao chegar o término de seu contrato e só ai se der conta das consequências da galonagem que sempre esteve defasada.
[1] Tartuce, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Editora Método, 2007, p. 205.
[2] Tartuce, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007, p. 205.